Autora: Cristina de Luca
Ontem, enquanto o Marco Civil da Internet era retirado de pauta mais uma vez, alimentando preocupações de que nunca chegue a ser de fato a tão desejada carta de princípios sonhada pelos ativistas das liberdades da rede, um baluarte da Internet no Brasil resumiu, em poucas palavras, o que poucos ousam dizer: “Cris, estou começando a achar que o marco NÃO pode passar como está. Do jeito que está escrito, a neutralidade vira pó e a coisa da guarda de dados dos serviços no país pode ser a base para reservas de mercado e censura… para filtrar serviços, como faz a China. Não sei se o relatório É mais o que queremos.” E queria saber as minhas impressões.
Concordei. Não só pelo clima pré-eleitoral do Congresso, que cada vez mais coloca em risco uma discussão sensata sobre temas cobertos pelo Marco Civil, determinantes para o papel que o país virá a ter na Era do Conhecimento, mas pelo risco real de o Marco Civil acabar se tornando uma licença legislativa para o país entrar na onda da Balcanização da Internet.
Hoje, o que tem polarizado as discussões são menos os diretos mais corriqueiros dos usuários e os deveres dos provedores de conexão e de acesso frente a eles, e mais as brechas que a última versão do substitutivo do relator, Alessandro Molon (PT-RJ) abre ou não para mecanismos de controle, os mais diversos.
Neste exato momento, governos de todo mundo estão colocando de barreiras ao livre fluxo de informações através das fronteiras digitais. Impulsionados por preocupações sobre privacidade, segurança, vigilância e aplicação de leis, esse governos são construindo fronteiras no ciberespaço, fragmentando a a World Wide Web.
Ontem mesmo, enquanto Tim Berners-Lee, sob o guarda-chuva das comemorações de 25 anos da Web, dava o pontapé inicial em uma campanha em defesa dos princípios que fizeram da Web um sucesso, e do desbloqueio do imenso potencial dessa mesma Web, ainda inexplorado, o Parlamento Europeu aprovava o novo Regulamento de Proteção de Dados, por 621 votos a favor, 10 contra e 22 abstenções.
Em comunicado, a DigitalEurope, uma organização representativa do setor de TI, considerou esse regulamento ” inadequado para a economia digital” e demasiado rígido. “Vai prejudicar a capacidade da Europa tirar proveito de novas formas de utilização de dados. Isso vai colocar a Europa em desvantagem face a outras partes do mundo, que estão adotando novas tecnologias”, disse a entidade em um comunicado distribuído à imprensa.
Empresas de todos os tamanhos e de todos os setores serão impactadas pelas leis de proteção de dados da Europa. As nações europeias têm agora um salvo-conduto para construir “zonas de Schengen” para os dados, prejudicando a possibilidade de prestação de serviços globais.
Não por coincidência, também ontem tive acesso a um estudo recente, chamado “Dividindo a web: localização de dados versus a Internet global”, escrito por Anupam Chander, professor do International Law Center, na Universidade da Califórnia, que já começou a repercutir lá fora (Business Week e Financial Times).
O estudo alerta para os riscos da chamada “localização de dados”: criar barreiras artificiais para o comércio internacional; aumentar as possibilidades de vigilância por parte dos países; e consolidar o controle do que os cidadãos desses países veem através da Internet. Olha aí, retratados todos os temores do meu interlocutor…
“Barreiras não-tarifárias do século passado, para bens, reapareceram como firewalls bloqueando os fluxos de dados internacionais. Requisitos de localização de dados ameaçam os novos grandes avanços na tecnologia da informação , não só em relação à Computação em Nuvem , como também em relação ao Big Data e à Internet das Coisas. Requisitos igualmente importantes de localização de dados minam os direitos sociais, econômicos e civis , corroendo a capacidade dos consumidores e das empresas de se beneficiarem do acesso ao conhecimento e a mercados internacionais, dando aos governos maior controle sobre informações locais”, alerta o relatório.
Os exemplos? São muitos. O Irã busca desenvolver uma Internet livre de influências ocidentais ou dissidências internas. O governo australiano coloca restrições sobre dados de saúde que saem do país. A Coreia do Sul exige que os dados de mapeamento sejam armazenados internamente . O Vietnã insiste em uma cópia local de todos os dados vietnamitas, mais ou menos como o Brasil, que quer obrigar a instalação de data centers para que dados sobre os brasileiros sejam armazenados no país.
O estudo analisa medidas de localização de dados já em curso em dezesseis países: Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Rússia, Coreia do Sul, Suécia, Taiwan, Tailândia e Vietnã, bem como a União Europeia. Vale a leitura atenta.
Os esforços para manter os dados dentro das fronteiras nacionais ganharam força na esteira da revelações de espionagem eletrônica feitas por agências de inteligência dos Estados Unidos. Governos de todo o mundo, indignados com as divulgações recentes, citaram a vigilância externa como um argumento para evitar que os dados saiam de suas fronteiras, especialmente através de serviços prestados por empresas estrangeiras. Colocar dados em outros países põe em risco a segurança e privacidade de tais informações, argumentam.
“Imagine uma Internet onde os dados devem parar nas fronteiras nacionais, examinados para ver se ele estão autorizados a deixarem o país _ e entrarem nele _ e, possivelmente, tributados quando o fizerem. Fantasia?”, questiona o estudo. Eu já não tenho tanta certeza.
O fluxo de dados transfronteiras voltou para a ordem do dia. No Brasil, era considerado pelos militares assunto de Segurança Nacional. Quem já passou dos 40 anos de idade lembra muito bem que o conceito de fluxo de dados transfronteiras (FDT) foi aplicado na década de setenta como parte de uma política voltada à regulamentação e ao controle do tráfego de dados com o exterior. O pêndulo parece estar retornando…
FONTE: CorpTV
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